Uma alma nunca é surda a um valor de infância.
Bachelard
Nossa questão são as acontecências da infância. O pensar aqui
empreendido procura, a partir dela, resguardá-la no que jamais
poderemos dizer a seu respeito.
A voz que ecoará nas palavras desaguadas aqui não é apenas a de
alguém que se pretende especialista em determinada área do
conhecimento, mas da própria infância enquanto verbo encarnado na
vida que me foi doada. Pois, como bem disse o poeta, “não pode
haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do
ser que a revelou” (BARROS: 2010, p. 345). Com isso, o compromisso
aqui, é com a vida e seu vigor ético.
O vigor ético da vida se dá, a nosso ver, enquanto verbo. É ele a
potência que faz movimentar o que chamamos realidade no corpo do
real. Verbo é a respiração sempre criativa porque inaugural da vida.
Nesse sentido, vida não é apenas algo que pode estar em oposição à
morte, mas sim sua face revelada. O importante, porém, é percebermos
que independentemente da posição assumida, a leitura feita a respeito
de qualquer coisa é sempre, em primeiro lugar, uma autoleitura. Nada
do que lemos e interpretamos fazemos isentos de nós. É nossa existência
que está em jogo quando nos lançamos no corpo do verbo.
Por isso, “Brinquedo, infância e palavra”: tríade substantiva que
compõe o título desta escrita, aponta para o caráter sempre verbal de
qualquer categoria gramatical. Sendo assim, é necessário atentar para os verbos que, irrompidos do silêncio, fazem movimentar o sentido de
cada uma dessas palavras: brinquedo – brincar; infância – criar; palavra
– palavrar. Só desta forma poderemos iniciar um diálogo verdadeiro
com a vida. A final,
A vida primeira não é um ensaio de eternidade?
[...].
Que grande é a vida quando meditamos nos seus começos!
Meditar sobre uma origem, não é isso sonhar? E sonhar
sobre uma origem não é ultrapassá-la?
[...]
E o sonhador bem sabe que é preciso ir além do tempo das
febres para encontrar o tempo tranquilo, o tempo da infância
feliz em sua própria substância
(BACHELARD: 2011, p.104-105).
Substância essa que nos chama para mais do que simplesmente
pensar o tempo da infância como nos diz Bachelard. É preciso
reaprender a sonhar: infância é tempo!
Um tempo que nos é revelado, em parte, na cronologia que pensamos
conhecer. Com os olhos cansados, confundimos o tempo do tempo
com o nosso tempo e teorizamos certezas, a fim de dar conta do destino
de sermos mortais. O grande problema para nós, quando o assunto é
o tempo, é a condição originária de nossa mortalidade. Como lidar de
forma saudável com o tempo, se nos foi retirado o prazer de morrer?
Parece estranho, mas pensar com profundidade a infância implica, aos
poucos, restituirmos a magia da morte.
Das inúmeras más leituras que foram feitas ao longo da caminhada
humana, talvez a mais devastadora tenha sido a da morte. Entendida
como fatalidade, aprendemos sem sentir que é ela a culpada pelo fenecer
de tudo o que existe. Doença dos olhos elevada ao mais alto grau
quando, nos túmulos espalhados pelo mundo, confundimos lembranças
com memória e perpetuamos a cultura da tristeza, do desespero e da
violência, presentes quando, diante dela (da morte), maldizemos a vida.
Iludidos na dicotomia que nos ensinaram a ver, caminhamos no
tempo, edificando ilusões explicativas que tentam dar conta de nossa
finitude. Resultado: infância se tornou apenas uma fase pertencente ao passado; brinquedo, apenas um objeto a ser comercializado para o
agora lucrativo ‘público infantil’; e palavra, a possibilidade de registro
de toda essa barbaridade. Até quando nos manteremos condicionados
aos paradigmas que surdamente criamos?
Por estarem embebidos do mistério, poetas erguem suas vozes e
proclamam: “é preciso desver o mundo” (BARROS: 2010, p. 360) –
tarefa árdua para nós, filhos de uma metafísica já esquecida de si mesma.
Pois desver não aponta para um deixar de ver de tal forma para, então, a
partir da correção, passar a ver de maneira adequada. Desver nada tem a
ver com adequação, e sim com o disponibilizar-se ao inesperado. Desver
implica acolhimento para a inteireza de nossa incompletude.
É a partir
dela, condição originária de nossa mortalidade, que somos um poço fitando
o céu. Sem começo, meio ou fim, ainda que doa nos ossos perceber isso.
É a incompletude que nos movimenta em sendo deveniência da vida,
do tempo e, principalmente, presença de morte. A incompletude desenhada
a cada passo de existência nos aponta que ser mortal não é somente ter a
possibilidade de deixar de existir, mas de existir de fato. É porque morremos
que existimos, pois participamos da morte sendo o que dela tememos: seu
aroma. Ser o aroma da morte, contudo, não significa nada. A tentativa de
explicação para este desfato de acontecência é o que nos têm deixado
“doentes dos olhos”, como diria Caeiro. Mas como prender o tempo
dentro de uma régua, se os números não foram feitos senão para nos
indicar a infinitude da exatidão?
Infância é morte.
Mas que fique claro de que morte estamos falando. Pois a morte
fatalista é apenas uma das muitas possibilidades de a própria morte se
dar. Falo da morte concrescente. Da morte que nos lança ao nascimento
prolongado pela vida inteira, como certa vez me contou Clarice, ao me
questionar no dentro de meus olhos.
Morte é instauração do não saber perpétuo, que nos faz mais sensíveis
ao olhar quando nos abrimos para o poético do ato de ver. Falo da morte
necessária ao olhar que, lançado ao chão, pode enfim empobrecer. O
empobrecimento do olhar é tão fundamental aos olhos quanto eles mesmos.
É preciso que recobremos a ética de Édipo e arranquemos nossos olhos
não por termos a consciência racional do erro, mas por descobrirmos,
sem saber, que somos rastros do mistério, à medida que não o procuramos
mais. A não procura, no entanto, não aponta para uma inércia existencial.
Mas para a desconsciência de já sermos a procura que tanto procuramos.
A infância é a questão das questões, se a deixamos falar de dentro do
mistério que ela mesma instaura. Limitá-la à cronologia aponta nossa falta
de movimento para a vida. Ainda não sabemos ser corpo e, por isso,
confundimos limite com impossibilidade. A infância passível de ser
identificada a partir da categorização de uma faixa etária não reduz a infância,
ela mesma, de sua movimentação originária. Na verdade, a infância que
serve de tema para tantos tratados e estudos não passa de uma possibilidade
dada pela própria infância para entendimento ou desentendimento dela
mesma. Pois, aceitando ou não, não somos nós quem a dizemos, é ela
quem se diz naquilo que não captamos de nossa voz. É o que
constantemente nos parece fugir ou simplesmente ficar, por não nos
atentarmos para o caráter de vigor de tudo o que é essencial. A infância, no
dentro do tempo e da morte, é o próprio vigorar.
Nesse sentido, infância não deve ser confundida com infantil. Pois
este adjetivo (infantil) já aponta para um olhar “doente dos olhos” que,
a partir da adjetivação da realidade, tenta dar conta do real e de sua
movimentação sempre verbal, “reduzindo-o” ao que os olhos podem
ver. É por isso que me arrisco em afirmar que: literatura infantil, cultura
infantil, universo infantil, público infantil ou qualquer outra categoria
que se crie pensando dizer a infância, na verdade, escamoteia a
ignorância de quem a criou.
Todas as categorias infantis são, na verdade, a maneira pela qual
registramos o esquecimento da infância em nós. É porque não nos
permitimos mais à infância que amanhecemos infantis para a vida e
para nós mesmos. Se pensarmos humildemente, veremos que a cisão
e fragmentação percebida por nós, em todos os lugares, não passa da
infantilização à qual submetemos nosso olhar em relação ao mundo.
Ao invés de nos lançarmos no inesperado do verbo, preferimos as
certezas dos adjetivos, sem perceber que também eles são verbos
amanhecidos diferentes no desabrochar da linguagem.
A infância é o ignorado descoberto. E o ignorado somos nós.
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele
para mostrar aos irmãos
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que
do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que
carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça,
Monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando
ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com suas peraltagens.
E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos
(BARROS: 2010, p. 469-470).
Quando a infância nos toma, passamos a “carregar água na peneira
pela vida toda” e podemos ser finalmente crianças para sempre.
Penso o ser criança a partir de sua origem verbal: criar. Criança é
ser vigor de criação, núcleo originário da infância. Daí que crescer,
entendido como “deixar aos poucos de ser criança”, é uma falácia. Na
verdade, crescer é o desabrochar enraizante da criança habitada em
nós.
É porque habitamos em infância, sendo criança, que somos, ainda que
não percebamos, sempre um vir a ser. Em sendo deveniência, não apenas
encenamos a mudança, como incorporamos a permanência sempre
inaugural do criar. Daí ser importante, quando nos remetemos à infância,
nos questionarmos a respeito das peculiaridades da criação. Pensar a
criação é trazer à presença a criança, para além das categorias sugeridas
ao tentar dizê-la. Ao pensarmos a criação, deixamos que a própria criança
se diga e nos permitimos dizer com, e não apenas sobre ela.
Para pensar a criação é preciso sensibilidade. Quando falo de criação,
não falo apenas de criação artística, humana, cultural etc. Até porque, se
compreendermos a arte, o humano e a cultura como movimentação da
própria criação, torna-se redundante dizer que determinada criação é isso
ou aquilo. Pois qualquer coisa que se dê a ver é já, em seu germe, um
núcleo criativo. Nesse sentido, a criação é o ponto de concentração de
tudo o que é e não é. Enquanto vigor verbal, é a gênese de toda a realidade.
Daí que ser criança implica estar disponível para assumir a posição
que se é, à medida que traz à tona essa gênese. Posição essa que não
nos define, antes nos abre para o livre aberto que somos: destino em
pele de liberdade. Assumir a posição que se é é estar na posição que
desde sempre já somos, independentemente da condição apresentada.
Desabrochados em nós mesmos, saberemos a liberdade, a criação e a
infância que desde sempre somos. Não é à toa que Manoel de Barros
proclama só ter tido infância e sido a partir dela. Sua liberdade alcançada
revela a potência de nossa humanidade – nunca velha ou nova.
Humanidade diz a essência do ser homem, ou seja, o saber ver que
nos restitui o húmus do qual viemos e pelo qual erguemos a habitação
de nossa existência. Nossa humanidade, ainda por ser desvista, sonha
com a criança esquecida e herdada em corpo por cada um de nós.
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés de
seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de
orvalho
(BARROS: 2010, p. 343).
“As pobres coisas do chão mijadas de orvalho” nada mais são do
que nossa ancestralidade, a saber, a infância da existência – instante-já
em que éramos infinitos grãos. Monumentá-las, como deseja a criançapoeta,
é presentar na pele a memória do que, em vigor, somos. Esta
“mania de grandeza” é puro apelo de criação. Em dentro dele, nos
desformamos, ou seja, entramos em estado contínuo de cura, cuidado,
demora com todas as coisas. É este estado de demora que nos faz
encenar o sentido exalado pelo mistério do que chamamos vida.
O ser criança exige de nós demora. Uma demora distraída dos
monumentos e sensível ao monumentar. Pois não basta a coisa pronta.
A magia é da coisa “por se fazer”. É desse modo que brincar surge não
como mera atividade, mas como ato poético de demora com o nada.
Brincar, para nós, é chão enquanto possibilidade de vir a ser de
tudo o que é. Brinquedo é a assunção da posição no instante da
deveniência. No ‘entre’ de um e outro está o mistério. É na ciranda
brincalhona e misteriosa da vida que acontecemos, sendo brinquedos
brotados e brotantes do mistério que nos é. Por isso, a desorigem do
brinquedo data do quando.
Brinquedo, na verdade, aponta para as possibilidades de irrupção
do brincar. O brincar é a forma mais genuína de construção de um
habitar, ou seja, ser homem. Pois, habitar nada mais é do que “um
demorar-se junto às coisas” (HEIDEGGER: 2001, p. 131). Sendo
assim, podemos reconhecer duas formas diferentes de habitação
humana: uma que se dá enquanto brinquedo da razão; e outra, como
brinquedo de poesia. Para cada tipo de habitação construída, apresenta-se
uma forma de demora distinta. O importante, no entanto, é
percebermos que uma não anula a potência criativa da outra, pelo
contrário, revelam a infância sempre em movimento do real.
Comecemos pelo brinquedo da razão. O brincar exalado pelo brinquedo
da razão exige regra e discurso. É pelo decreto e pela legitimação imposta aos gestos que ele se edifica. Ser o brinquedo da razão implica poder
tornar tudo comercializável. Assim, uma boneca, um carrinho, uma pipa ou
qualquer outro objeto não passam de mero objeto. A distância entre o
tocado e o tocador é condição sine qua non para a fragmentação própria
de seu movimento. É porque ele existe que falamos de conceitos como
fantasia e/ou fabulações de infância, entendendo-as como algo fora de
uma realidade já pré-estabelecida e aceita enquanto paradigma para se
compreender o real. Para participar do brinquedo da razão, basta se
construir uma criança razoável.
A demora trazida pelo brinquedo da razão nos impele à pressa. Como
tudo é passível de ser previamente explicado, não há de fato uma demora
com as coisas. Assim é que a criação que dele irrompe é produção. Tudo
passa a ser produtivo e/ou produzido. A quantidade é também algo muito
próprio do brinquedo da razão, muito justificável, se pensarmos que pressa
sempre é pressa por muito ou pouco, mas nunca pela coisa ela mesma. É
pela dinâmica da produção que se cria a lógica do seu brincar. O brinquedo
da razão se funda na crise da adultice.
Adultice é a doença dos que acreditam que a infância é um algo que
simplesmente passa e que, por sê-lo, padece de cuidado. O cuidado
oferecido por alguém doente de adultice é a definição. O brinquedo da
razão é fruto das definições que tentam dar conta da infância e da criança.
É em sua habitação que surgem o chamado mundo infantil. Como nele
tudo pode ser conceituado, as produções têm causas e fins bem definidos.
Geralmente a criança razoável, habitante da morada dos brinquedos da
razão, é bem problemática. A todo instante é alvo de diagnósticos e pseudoolhares
psicopedagógicos. Na dinâmica lógica de sua realidade, é chamada
de criança consumidora. Não lhe basta ter uma boneca bacana com quem
pode inventar uma conversa. Ela deseja ter todas as bonecas pelo simples
prazer de possuir. Aliás, a invenção, a não ser que seja fruto de uma exatidão,
não lhe apetece por não lhe fazer sentido. É dessa forma que a criança
razoável revela o surgimento de um ser-homem tedioso e descrente do
mistério. Ela já não acredita mais em contos de fada ou nos mitos, pois,
para ela, não passam de “historinhas para boi dormir”. A criança razoável
só acredita no realismo que seus olhos identificam. A realidade para ela é o
paredão-limite de seus olhos. É assim que: azul passa a ser cor de menino;
saia, roupa só de menina; homem só pode casar com mulher e a vida...
Bem, nada que um bom estudo científico não possa responder.
Por outro lado, a maneira como a infância acontece enquanto morada
dos brinquedos de poesia pode ser bem entendida com os versos de
Manoel de Barros:
Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano (2010, p. 339).
Os brinquedos de poesia são o corpo presente de todas as coisas.
É por ser toda corpo que a criança bocó, habitante da poesia, se abre
em demora. Seu próprio corpo torna-se o andor onde ela mesma pode
carregar seus primórdios – dedos que divinam a condução do seu
olhar. O brincar para a criança bocó é assim a sacralidade urinada em
suas primeiras palavras.
Tudo é possível e mágico para a criança bocó. Os brinquedos de poesia,
feitos de verbo e cores de compor horizontes, são o que nela é escândalos
de gargalhadas ao vento. Costuras de nadas com postes e lesmas, com
silêncios que restituem à existência sua potência de infância. A habitação
irrompida enquanto brinquedos de poesia apresenta o corpo como morada
primeira da criação, com alicerces erguidos em despropósitos e materiais
aproveitados do lixo. Os brinquedos de poesia são um convite para
desaprendermos a ver. Pois a diferença entre eles e os brinquedos da
razão não está na forma dos objetos e corpos em si, mas na maneira como
a criança bocó e a criança razoável os interpreta.
Contrário ao que faz a criança razoável, sempre em busca de uma
definição condizente com seus paradigmas, a criança bocó olha para o
mesmo objeto e sem perguntas apenas proclama: “repetir, repetir – até
ficar diferente” (BARROS: 2010, p. 300). Essa é sua fórmula mágica
para desver o mundo, sendo com ele sempre uma primeira vez. O
maior desejo da criança bocó é o feitiço das palavras. É por isso que
todo o seu estar sendo é puro encantamento.
A criança bocó sabe sem se pré-ocupar que pode ser o que sua
imaginação quiser. A querência exalada nas suas brincadeiras é o que
lhe permite “voar fora da asa” (BARROS: 2010, p. 302) e incorporar
a poesia presente em gorjeios no seio do real. Não há novidades ou
antiguidades em relação aos brinquedos de poesia, pois eles são sempre
a possibilidade para o outrar-se. Na morada da poesia, a criança bocó
é deixada no abandono para, livremente, manusear o que desejar –
espaço essencial da brincadeira: lugar onde estar sendo é criar-se mundo
e mundificar realidades em infância.
A identificação da criança bocó por determinado material é mais do
que mera identificação, mas reconhecimento de si mesma nas
peculiaridades apresentadas pelo material. A todo momento, ainda que
não se perceba e ela não verbalize, o olhar da criança bocó manifesta
em seus gestos e impulsos a seguinte questão: o que de mim há no que
toco e me toca?
Brincar com brinquedos de poesia é, para a criança bocó,
lançamento para os braços da vida sem receios com alegrias ou tristezas.
Pois brincar aqui é verbo de ser entrega. As brincadeiras criadas
deflagram a espaço-temporalidade sem proibições instaurada pela
poesia. Em se brincando, a criança bocó pode ser tudo o que é e não
é, pois está livre para adentrar a magia de experienciar a vida sem ser
acusada de louca ou culpada por seus ilogismos. É com ela que
aprendemos que “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo
para ser séria” (BARROS: 2010, p. 348).
A tipologia brincativa do habitar humano apresentada aqui, mais do
que definir formas diferentes de estar sendo em infância, procurou
revelar a importância existencial do brincar, do brinquedo e da
brincadeira. Pois, diante dela, é fato que qualquer atividade realizada
pelo homem é, deve ou, pelo menos, deveria ser sempre fruto de sua
mais sincera brincadeira, seja ela oriunda de um brincar empreendido
pela razão ou pela poesia.
Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem
nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com as palavras
Tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
E nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem de sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
E na sua voz uma candura de Fontes.
[...]
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o
sentido normal das ideias.
Porque a gente sabia que só os absurdos enriquecem a
poesia (BARROS: 2010, p. 449-450).
É na palavra que fica registrada a ambiguidade da existência, esteja
ela amanhecida em ser oralidade ou escrita – rastros-unidade de uma
única luz. Pois tanto os habitantes da razão quanto os da poesia
mundificam seu olhar em palavras.
A ambiguidade, contrária à simples dicotomia, conserva a tensão
entre coisas aparentemente opostas. Tensão diz vigor daquilo que não
podemos dimensionar, mas ansiamos, com toda a existência, fazê-lo.
A ambiguidade é, portanto, o núcleo básico do movimento de existir.
Na dicotomia, cada coisa ocupa um lugar determinado pela razão
e, por conta disso, coisa alguma pode ser ela mesma. Explico melhor:
para a razão, uma palavra, por exemplo, não é apenas palavra, mas
código a ser decifrado pelos alfabetizados em conceituar. Desse modo,
a palavra é vista e compreendida como símbolo, isto é, representação
funcional de algo que se instituiu ser a realidade. Daí se dizer que a
palavra está afastada da própria coisa e, por consequência disso, nos
manter afastados também, à medida que é por intermédio dela – palavra
– que participamos do mundo.
Evocar uma palavra seria, para os amantes da razão, uma das formas
mais eficazes e, por que não dizer, higiênicas de se lidar com a realidade.
A palavra assim concebida seria a possibilidade de nos mantermos
limpos diante da sujeira imposta pela vida. Não é à toa que, para eles,
os razoáveis, a palavra não passa de mero instrumento. Instrumento é
justamente aquilo que nos protege das possibilidades de morte,
ofertadas pela própria vida. No fundo, toda a dicotomia nos distrai e amedronta para o direito de convivermos a morte. E é justamente isso
que a ambiguidade conserva.
A ambiguidade nos permite o convívio com a morte, entendida aqui,
conforme já dissemos anteriormente, como o inesperado que nos faz
absurdar com o destamanho da vida. Tal destamanho se revela desenho
de corpo na existência da palavra.
“Palavra aceita tudo”, diz Manoel de Barros. Talvez por isso seja
ela não apenas código linguístico, mas pura doação e, porque
recolhimento, amor. Pois a palavra, assim como a infância, não é
mensageira de nada. A palavra é a mensagem. Portar, no resguardo de
estar sendo, a infância da palavra em corpo é habitar o destino de ser
criança: consumar que nos reconduz à gênese ou, como diria o poeta:
Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
Para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo (BARROS: 2010,
p. 368).
Referências
BACHELARD, Gaston. “Os devaneios voltados para a infância”. In: A
poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
HEIDEGGER, Martin. “Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e
conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 125-141.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres.
Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Porto Alegre: L&PM,
2007.
PS.: Texto publicado na Revista Tempo Brasileiro, nº 194, Dialética em Questão, 2013.