sábado, 26 de setembro de 2015

Teatro: o exercício da minha infância

Há algumas semanas, vi uma entrevista de Augusto Boal no youtube, na qual ele dizia ser o teatro o exercício da infância presente em cada ser humano... A infância, conforme disse, seria o lugar do homem teatral à medida que, se apropriando de si, iria se deparar sempre com o novo de si mesmo, tal qual uma criança consegue realizar em seu cotidiano... "apesar de ".

Fiquei pensando sobre aquilo e comecei a compreender o motivo pelo qual a vida tem me convocado ao teatro... exercer a infância que carrego nos olhos...

Feliz por perceber isso, resolvi compartilhar aqui a experiência que mais me marcou nesses três anos em que venho me entregando ao teatro... Trata-se da peça Os Segredos de Urupemba, uma livre adaptação da obra infanto-juvenil Inventário de Segredos, de Socorro Acciolli. Nele experienciei o meu ser atriz criadora, pois fomos nós, o elenco, que junto com o diretor, Laércio Mota, pensou, sentiu e realizou cada etapa da montagem. O desafio aceito e realizado de pronto foi dar vida e voz a mais de uma personagem. Foi assim que, depois de amorosamente gestadas, nasceram Nadir e Rita nesta pele que vos fala...

São três anos... e a gratidão já é eterna...

Descubro a cada dia que o teatro é a educação de que necessito enquanto um ser de alma... é a poesia que funda o meu corpo...

E eu estou só começando...




























































































Direção
Laércio Motta
 
Cenografia e figurino:  
Rose Assis
 
Elenco:
Anivio Laranja
Bianca Bento
Bianka Barbosa
Fabiano da Cruz
Janaina Serrano
Jean Costa
Joseane Fausto
Lucas Vizani
Paulo Ricardo Aiello
Rafael Nicolay
Vivian Amaral
Yuri Brandão


Infância na obra da linda Frida Khalo

Moisés, O Núcleo da Criação, 1945


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Brinquedo, Infância e Palavra

Uma alma nunca é surda a um valor de infância.
Bachelard 


Nossa questão são as acontecências da infância. O pensar aqui empreendido procura, a partir dela, resguardá-la no que jamais poderemos dizer a seu respeito.

A voz que ecoará nas palavras desaguadas aqui não é apenas a de alguém que se pretende especialista em determinada área do conhecimento, mas da própria infância enquanto verbo encarnado na vida que me foi doada. Pois, como bem disse o poeta, “não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou” (BARROS: 2010, p. 345). Com isso, o compromisso aqui, é com a vida e seu vigor ético.

O vigor ético da vida se dá, a nosso ver, enquanto verbo. É ele a potência que faz movimentar o que chamamos realidade no corpo do real. Verbo é a respiração sempre criativa porque inaugural da vida. Nesse sentido, vida não é apenas algo que pode estar em oposição à morte, mas sim sua face revelada. O importante, porém, é percebermos que independentemente da posição assumida, a leitura feita a respeito de qualquer coisa é sempre, em primeiro lugar, uma autoleitura. Nada do que lemos e interpretamos fazemos isentos de nós. É nossa existência que está em jogo quando nos lançamos no corpo do verbo.

Por isso, “Brinquedo, infância e palavra”: tríade substantiva que compõe o título desta escrita, aponta para o caráter sempre verbal de qualquer categoria gramatical. Sendo assim, é necessário atentar para os verbos que, irrompidos do silêncio, fazem movimentar o sentido de cada uma dessas palavras: brinquedo – brincar; infância – criar; palavra – palavrar. Só desta forma poderemos iniciar um diálogo verdadeiro com a vida. A final,


A vida primeira não é um ensaio de eternidade? [...]. Que grande é a vida quando meditamos nos seus começos! Meditar sobre uma origem, não é isso sonhar? E sonhar sobre uma origem não é ultrapassá-la? [...] E o sonhador bem sabe que é preciso ir além do tempo das febres para encontrar o tempo tranquilo, o tempo da infância feliz em sua própria substância (BACHELARD: 2011, p.104-105).


Substância essa que nos chama para mais do que simplesmente pensar o tempo da infância como nos diz Bachelard. É preciso reaprender a sonhar: infância é tempo!
Um tempo que nos é revelado, em parte, na cronologia que pensamos conhecer. Com os olhos cansados, confundimos o tempo do tempo com o nosso tempo e teorizamos certezas, a fim de dar conta do destino de sermos mortais. O grande problema para nós, quando o assunto é o tempo, é a condição originária de nossa mortalidade. Como lidar de forma saudável com o tempo, se nos foi retirado o prazer de morrer? Parece estranho, mas pensar com profundidade a infância implica, aos poucos, restituirmos a magia da morte.

Das inúmeras más leituras que foram feitas ao longo da caminhada humana, talvez a mais devastadora tenha sido a da morte. Entendida como fatalidade, aprendemos sem sentir que é ela a culpada pelo fenecer de tudo o que existe. Doença dos olhos elevada ao mais alto grau quando, nos túmulos espalhados pelo mundo, confundimos lembranças com memória e perpetuamos a cultura da tristeza, do desespero e da violência, presentes quando, diante dela (da morte), maldizemos a vida.

Iludidos na dicotomia que nos ensinaram a ver, caminhamos no tempo, edificando ilusões explicativas que tentam dar conta de nossa finitude. Resultado: infância se tornou apenas uma fase pertencente ao passado; brinquedo, apenas um objeto a ser comercializado para o agora lucrativo ‘público infantil’; e palavra, a possibilidade de registro de toda essa barbaridade. Até quando nos manteremos condicionados aos paradigmas que surdamente criamos?

Por estarem embebidos do mistério, poetas erguem suas vozes e proclamam: “é preciso desver o mundo” (BARROS: 2010, p. 360) – tarefa árdua para nós, filhos de uma metafísica já esquecida de si mesma. Pois desver não aponta para um deixar de ver de tal forma para, então, a partir da correção, passar a ver de maneira adequada. Desver nada tem a ver com adequação, e sim com o disponibilizar-se ao inesperado. Desver implica acolhimento para a inteireza de nossa incompletude.

É a partir dela, condição originária de nossa mortalidade, que somos um poço fitando o céu. Sem começo, meio ou fim, ainda que doa nos ossos perceber isso. É a incompletude que nos movimenta em sendo deveniência da vida, do tempo e, principalmente, presença de morte. A incompletude desenhada a cada passo de existência nos aponta que ser mortal não é somente ter a possibilidade de deixar de existir, mas de existir de fato. É porque morremos que existimos, pois participamos da morte sendo o que dela tememos: seu aroma. Ser o aroma da morte, contudo, não significa nada. A tentativa de explicação para este desfato de acontecência é o que nos têm deixado “doentes dos olhos”, como diria Caeiro. Mas como prender o tempo dentro de uma régua, se os números não foram feitos senão para nos indicar a infinitude da exatidão?

Infância é morte.

Mas que fique claro de que morte estamos falando. Pois a morte fatalista é apenas uma das muitas possibilidades de a própria morte se dar. Falo da morte concrescente. Da morte que nos lança ao nascimento prolongado pela vida inteira, como certa vez me contou Clarice, ao me questionar no dentro de meus olhos.

Morte é instauração do não saber perpétuo, que nos faz mais sensíveis ao olhar quando nos abrimos para o poético do ato de ver. Falo da morte necessária ao olhar que, lançado ao chão, pode enfim empobrecer. O empobrecimento do olhar é tão fundamental aos olhos quanto eles mesmos. É preciso que recobremos a ética de Édipo e arranquemos nossos olhos não por termos a consciência racional do erro, mas por descobrirmos, sem saber, que somos rastros do mistério, à medida que não o procuramos mais. A não procura, no entanto, não aponta para uma inércia existencial. Mas para a desconsciência de já sermos a procura que tanto procuramos.

A infância é a questão das questões, se a deixamos falar de dentro do mistério que ela mesma instaura. Limitá-la à cronologia aponta nossa falta de movimento para a vida. Ainda não sabemos ser corpo e, por isso, confundimos limite com impossibilidade. A infância passível de ser identificada a partir da categorização de uma faixa etária não reduz a infância, ela mesma, de sua movimentação originária. Na verdade, a infância que serve de tema para tantos tratados e estudos não passa de uma possibilidade dada pela própria infância para entendimento ou desentendimento dela mesma. Pois, aceitando ou não, não somos nós quem a dizemos, é ela quem se diz naquilo que não captamos de nossa voz. É o que constantemente nos parece fugir ou simplesmente ficar, por não nos atentarmos para o caráter de vigor de tudo o que é essencial. A infância, no dentro do tempo e da morte, é o próprio vigorar.

Nesse sentido, infância não deve ser confundida com infantil. Pois este adjetivo (infantil) já aponta para um olhar “doente dos olhos” que, a partir da adjetivação da realidade, tenta dar conta do real e de sua movimentação sempre verbal, “reduzindo-o” ao que os olhos podem ver. É por isso que me arrisco em afirmar que: literatura infantil, cultura infantil, universo infantil, público infantil ou qualquer outra categoria que se crie pensando dizer a infância, na verdade, escamoteia a ignorância de quem a criou.

Todas as categorias infantis são, na verdade, a maneira pela qual registramos o esquecimento da infância em nós. É porque não nos permitimos mais à infância que amanhecemos infantis para a vida e para nós mesmos. Se pensarmos humildemente, veremos que a cisão e fragmentação percebida por nós, em todos os lugares, não passa da infantilização à qual submetemos nosso olhar em relação ao mundo. Ao invés de nos lançarmos no inesperado do verbo, preferimos as certezas dos adjetivos, sem perceber que também eles são verbos amanhecidos diferentes no desabrochar da linguagem. A infância é o ignorado descoberto. E o ignorado somos nós.



O menino que carregava água na peneira


Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, Monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com suas peraltagens.
E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos (BARROS: 2010, p. 469-470).


Quando a infância nos toma, passamos a “carregar água na peneira pela vida toda” e podemos ser finalmente crianças para sempre.

Penso o ser criança a partir de sua origem verbal: criar. Criança é ser vigor de criação, núcleo originário da infância. Daí que crescer, entendido como “deixar aos poucos de ser criança”, é uma falácia. Na verdade, crescer é o desabrochar enraizante da criança habitada em nós.

É porque habitamos em infância, sendo criança, que somos, ainda que não percebamos, sempre um vir a ser. Em sendo deveniência, não apenas encenamos a mudança, como incorporamos a permanência sempre inaugural do criar. Daí ser importante, quando nos remetemos à infância, nos questionarmos a respeito das peculiaridades da criação. Pensar a criação é trazer à presença a criança, para além das categorias sugeridas ao tentar dizê-la. Ao pensarmos a criação, deixamos que a própria criança se diga e nos permitimos dizer com, e não apenas sobre ela.

Para pensar a criação é preciso sensibilidade. Quando falo de criação, não falo apenas de criação artística, humana, cultural etc. Até porque, se compreendermos a arte, o humano e a cultura como movimentação da própria criação, torna-se redundante dizer que determinada criação é isso ou aquilo. Pois qualquer coisa que se dê a ver é já, em seu germe, um núcleo criativo. Nesse sentido, a criação é o ponto de concentração de tudo o que é e não é. Enquanto vigor verbal, é a gênese de toda a realidade.

Daí que ser criança implica estar disponível para assumir a posição que se é, à medida que traz à tona essa gênese. Posição essa que não nos define, antes nos abre para o livre aberto que somos: destino em pele de liberdade. Assumir a posição que se é é estar na posição que desde sempre já somos, independentemente da condição apresentada. Desabrochados em nós mesmos, saberemos a liberdade, a criação e a infância que desde sempre somos. Não é à toa que Manoel de Barros proclama só ter tido infância e sido a partir dela. Sua liberdade alcançada revela a potência de nossa humanidade – nunca velha ou nova.

Humanidade diz a essência do ser homem, ou seja, o saber ver que nos restitui o húmus do qual viemos e pelo qual erguemos a habitação de nossa existência. Nossa humanidade, ainda por ser desvista, sonha com a criança esquecida e herdada em corpo por cada um de nós.


Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés de seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho (BARROS: 2010, p. 343).


“As pobres coisas do chão mijadas de orvalho” nada mais são do que nossa ancestralidade, a saber, a infância da existência – instante-já em que éramos infinitos grãos. Monumentá-las, como deseja a criançapoeta, é presentar na pele a memória do que, em vigor, somos. Esta “mania de grandeza” é puro apelo de criação. Em dentro dele, nos desformamos, ou seja, entramos em estado contínuo de cura, cuidado, demora com todas as coisas. É este estado de demora que nos faz encenar o sentido exalado pelo mistério do que chamamos vida.

O ser criança exige de nós demora. Uma demora distraída dos monumentos e sensível ao monumentar. Pois não basta a coisa pronta. A magia é da coisa “por se fazer”. É desse modo que brincar surge não como mera atividade, mas como ato poético de demora com o nada.

Brincar, para nós, é chão enquanto possibilidade de vir a ser de tudo o que é. Brinquedo é a assunção da posição no instante da deveniência. No ‘entre’ de um e outro está o mistério. É na ciranda brincalhona e misteriosa da vida que acontecemos, sendo brinquedos brotados e brotantes do mistério que nos é. Por isso, a desorigem do brinquedo data do quando.

Brinquedo, na verdade, aponta para as possibilidades de irrupção do brincar. O brincar é a forma mais genuína de construção de um habitar, ou seja, ser homem. Pois, habitar nada mais é do que “um demorar-se junto às coisas” (HEIDEGGER: 2001, p. 131). Sendo assim, podemos reconhecer duas formas diferentes de habitação humana: uma que se dá enquanto brinquedo da razão; e outra, como brinquedo de poesia. Para cada tipo de habitação construída, apresenta-se uma forma de demora distinta. O importante, no entanto, é percebermos que uma não anula a potência criativa da outra, pelo contrário, revelam a infância sempre em movimento do real.

Comecemos pelo brinquedo da razão. O brincar exalado pelo brinquedo da razão exige regra e discurso. É pelo decreto e pela legitimação imposta aos gestos que ele se edifica. Ser o brinquedo da razão implica poder tornar tudo comercializável. Assim, uma boneca, um carrinho, uma pipa ou qualquer outro objeto não passam de mero objeto. A distância entre o tocado e o tocador é condição sine qua non para a fragmentação própria de seu movimento. É porque ele existe que falamos de conceitos como fantasia e/ou fabulações de infância, entendendo-as como algo fora de uma realidade já pré-estabelecida e aceita enquanto paradigma para se compreender o real. Para participar do brinquedo da razão, basta se construir uma criança razoável.

A demora trazida pelo brinquedo da razão nos impele à pressa. Como tudo é passível de ser previamente explicado, não há de fato uma demora com as coisas. Assim é que a criação que dele irrompe é produção. Tudo passa a ser produtivo e/ou produzido. A quantidade é também algo muito próprio do brinquedo da razão, muito justificável, se pensarmos que pressa sempre é pressa por muito ou pouco, mas nunca pela coisa ela mesma. É pela dinâmica da produção que se cria a lógica do seu brincar. O brinquedo da razão se funda na crise da adultice.

Adultice é a doença dos que acreditam que a infância é um algo que simplesmente passa e que, por sê-lo, padece de cuidado. O cuidado oferecido por alguém doente de adultice é a definição. O brinquedo da razão é fruto das definições que tentam dar conta da infância e da criança. É em sua habitação que surgem o chamado mundo infantil. Como nele tudo pode ser conceituado, as produções têm causas e fins bem definidos.

Geralmente a criança razoável, habitante da morada dos brinquedos da razão, é bem problemática. A todo instante é alvo de diagnósticos e pseudoolhares psicopedagógicos. Na dinâmica lógica de sua realidade, é chamada de criança consumidora. Não lhe basta ter uma boneca bacana com quem pode inventar uma conversa. Ela deseja ter todas as bonecas pelo simples prazer de possuir. Aliás, a invenção, a não ser que seja fruto de uma exatidão, não lhe apetece por não lhe fazer sentido. É dessa forma que a criança razoável revela o surgimento de um ser-homem tedioso e descrente do mistério. Ela já não acredita mais em contos de fada ou nos mitos, pois, para ela, não passam de “historinhas para boi dormir”. A criança razoável só acredita no realismo que seus olhos identificam. A realidade para ela é o paredão-limite de seus olhos. É assim que: azul passa a ser cor de menino; saia, roupa só de menina; homem só pode casar com mulher e a vida... Bem, nada que um bom estudo científico não possa responder.

Por outro lado, a maneira como a infância acontece enquanto morada dos brinquedos de poesia pode ser bem entendida com os versos de Manoel de Barros:


Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano (2010, p. 339).


Os brinquedos de poesia são o corpo presente de todas as coisas. É por ser toda corpo que a criança bocó, habitante da poesia, se abre em demora. Seu próprio corpo torna-se o andor onde ela mesma pode carregar seus primórdios – dedos que divinam a condução do seu olhar. O brincar para a criança bocó é assim a sacralidade urinada em suas primeiras palavras.

Tudo é possível e mágico para a criança bocó. Os brinquedos de poesia, feitos de verbo e cores de compor horizontes, são o que nela é escândalos de gargalhadas ao vento. Costuras de nadas com postes e lesmas, com silêncios que restituem à existência sua potência de infância. A habitação irrompida enquanto brinquedos de poesia apresenta o corpo como morada primeira da criação, com alicerces erguidos em despropósitos e materiais aproveitados do lixo. Os brinquedos de poesia são um convite para desaprendermos a ver. Pois a diferença entre eles e os brinquedos da razão não está na forma dos objetos e corpos em si, mas na maneira como a criança bocó e a criança razoável os interpreta.

Contrário ao que faz a criança razoável, sempre em busca de uma definição condizente com seus paradigmas, a criança bocó olha para o mesmo objeto e sem perguntas apenas proclama: “repetir, repetir – até ficar diferente” (BARROS: 2010, p. 300). Essa é sua fórmula mágica para desver o mundo, sendo com ele sempre uma primeira vez. O maior desejo da criança bocó é o feitiço das palavras. É por isso que todo o seu estar sendo é puro encantamento.

A criança bocó sabe sem se pré-ocupar que pode ser o que sua imaginação quiser. A querência exalada nas suas brincadeiras é o que lhe permite “voar fora da asa” (BARROS: 2010, p. 302) e incorporar a poesia presente em gorjeios no seio do real. Não há novidades ou antiguidades em relação aos brinquedos de poesia, pois eles são sempre a possibilidade para o outrar-se. Na morada da poesia, a criança bocó é deixada no abandono para, livremente, manusear o que desejar – espaço essencial da brincadeira: lugar onde estar sendo é criar-se mundo e mundificar realidades em infância.

A identificação da criança bocó por determinado material é mais do que mera identificação, mas reconhecimento de si mesma nas peculiaridades apresentadas pelo material. A todo momento, ainda que não se perceba e ela não verbalize, o olhar da criança bocó manifesta em seus gestos e impulsos a seguinte questão: o que de mim há no que toco e me toca?

Brincar com brinquedos de poesia é, para a criança bocó, lançamento para os braços da vida sem receios com alegrias ou tristezas. Pois brincar aqui é verbo de ser entrega. As brincadeiras criadas deflagram a espaço-temporalidade sem proibições instaurada pela poesia. Em se brincando, a criança bocó pode ser tudo o que é e não é, pois está livre para adentrar a magia de experienciar a vida sem ser acusada de louca ou culpada por seus ilogismos. É com ela que aprendemos que “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria” (BARROS: 2010, p. 348).

A tipologia brincativa do habitar humano apresentada aqui, mais do que definir formas diferentes de estar sendo em infância, procurou revelar a importância existencial do brincar, do brinquedo e da brincadeira. Pois, diante dela, é fato que qualquer atividade realizada pelo homem é, deve ou, pelo menos, deveria ser sempre fruto de sua mais sincera brincadeira, seja ela oriunda de um brincar empreendido pela razão ou pela poesia.


Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com as palavras
Tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
E nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem de sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
E na sua voz uma candura de Fontes.
[...] A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias.
Porque a gente sabia que só os absurdos enriquecem a poesia (BARROS: 2010, p. 449-450).


É na palavra que fica registrada a ambiguidade da existência, esteja ela amanhecida em ser oralidade ou escrita – rastros-unidade de uma única luz. Pois tanto os habitantes da razão quanto os da poesia mundificam seu olhar em palavras.

A ambiguidade, contrária à simples dicotomia, conserva a tensão entre coisas aparentemente opostas. Tensão diz vigor daquilo que não podemos dimensionar, mas ansiamos, com toda a existência, fazê-lo. A ambiguidade é, portanto, o núcleo básico do movimento de existir.

Na dicotomia, cada coisa ocupa um lugar determinado pela razão e, por conta disso, coisa alguma pode ser ela mesma. Explico melhor: para a razão, uma palavra, por exemplo, não é apenas palavra, mas código a ser decifrado pelos alfabetizados em conceituar. Desse modo, a palavra é vista e compreendida como símbolo, isto é, representação funcional de algo que se instituiu ser a realidade. Daí se dizer que a palavra está afastada da própria coisa e, por consequência disso, nos manter afastados também, à medida que é por intermédio dela – palavra – que participamos do mundo.

Evocar uma palavra seria, para os amantes da razão, uma das formas mais eficazes e, por que não dizer, higiênicas de se lidar com a realidade. A palavra assim concebida seria a possibilidade de nos mantermos limpos diante da sujeira imposta pela vida. Não é à toa que, para eles, os razoáveis, a palavra não passa de mero instrumento. Instrumento é justamente aquilo que nos protege das possibilidades de morte, ofertadas pela própria vida. No fundo, toda a dicotomia nos distrai e  amedronta para o direito de convivermos a morte. E é justamente isso que a ambiguidade conserva.

A ambiguidade nos permite o convívio com a morte, entendida aqui, conforme já dissemos anteriormente, como o inesperado que nos faz absurdar com o destamanho da vida. Tal destamanho se revela desenho de corpo na existência da palavra.

“Palavra aceita tudo”, diz Manoel de Barros. Talvez por isso seja ela não apenas código linguístico, mas pura doação e, porque recolhimento, amor. Pois a palavra, assim como a infância, não é mensageira de nada. A palavra é a mensagem. Portar, no resguardo de estar sendo, a infância da palavra em corpo é habitar o destino de ser criança: consumar que nos reconduz à gênese ou, como diria o poeta:


Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
Para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo (BARROS: 2010, p. 368).



Referências

BACHELARD, Gaston. “Os devaneios voltados para a infância”. In: A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
HEIDEGGER, Martin. “Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 125-141.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Porto Alegre: L&PM, 2007.


PS.: Texto publicado na Revista Tempo Brasileiro, nº 194, Dialética em Questão, 2013.

sábado, 12 de setembro de 2015

#

Sou do tamanho de tudo o que me toca.
A palavra e o corpo namoram no meu ser.
Talvez por isso gestar, demorar, parir e nascer sejam o movimento do meu ventar.
Me gesto, me demoro, me paro, me nasço.
É no erotismo de existir que realizo o sentido.
Tomo o mundo de assalto.
E isso me basta.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Passarinho de mar é barco, V

Canoas ao mar.
Criação dos homens, dizem os sabidos.
Um dia, atentos para a Razão, eles (os homens) decidiram andar sobre as águas, como fez o Mambembe certa vez.
Criaram-se em corpos de rasgar sal. E acreditaram que realmente poderiam descobrir o que havia para depois do beijo azul, aquele mesmo pintado por Toquinho.
Não conseguiram.
Quanto mais se aproximavam, mais o beijo se alargava, demorando-se em ser as outras cores também.
Foi aí que tiveram uma ideia:
E se as castigássemos? De certo que não conseguimos descobrir o tempo por serem elas, as canoas, lentas demais. Façamos o seguinte...
E lá ficaram as pobres presas por cordas em lugar que não pudessem sair.
Eles achavam que eram seus donos e senhores.
Algumas ficaram lá... presas por um bom tempo. Outras sumiram sem dizer adeus.
Foi então que um dia, sentada à beira mar, uma cigana me contou a verdade sobre as canoas e os homens. Todas as canoas e homens do mundo.
Ela tinha os cabelos longos e os olhos brilhantes. Vestia blusa branca com bordados coloridos e uma saia que, ao vento, era o próprio ventar. Não havia nada em seus braços ou pescoço. Apenas uma flor no cabelo. Sentou-se ao meu lado e falou:
- Canoas e homens. É preciso olhar bem seus olhos e só então ler suas mãos. Mas nada dizer é o que mais diz. Homens acham que fazem as canoas. As canoas acham que são feitas por eles. Esse tipo de canoas e homens reduzem pedras à obstáculos e tronco à possibilidade de amarração. Ficam lá, presos um no outro sem nada ver.
Canoas e homens. Poucos descobrem a verdade. Queres saber, minha menina? Isso é mistério. Vou-lhe contar, pois estás iniciando-se em ser o que és. Então, escutas com atenção...
Canoas e homens nascem porque morrem do mar. É ele e só ele quem os faz. Tudo o que vês composto e descomposto em seus corpos é sal... é pó. Só por isso podem nele pousar. Os que descobrem isso costuram os olhos com vento, como o Mambembe. E assim não desejam mais descobrir coisa alguma. Descoberta alguma é válida se nela não houver ondas mar violentas. É preciso ter os olhos cobertos por areia e sal. Só assim, minha menina... só assim. Agora que já sabes, aprende tu a desamarrar os nós e, com vento, costurar teus olhos. Seja tu a tua canoa e tu mesma”.
Assim ela foi embora como nunca mais saísse de mim. Ainda hoje me pergunto como farei para costurar meus olhos com vento. Sinto dor todas as vezes que tento. Recuo, mas persisto: quero ser.