domingo, 21 de agosto de 2016

Internidade

Era sempre assim. Olhava para o céu em busca do chão. Pisava no chão para melhor sentir as nuvens. De tudo o que desejava, só o vento poderia lhe trazer. E enquanto não trazia, ela ficava lá, no alto da montanha, aprendendo a fazer ninhos com os passarinhos.
Era sempre assim. O dia demorava rápido a passar e lá estavam as pessoas de um lado para o outro sem saber ao certo que rumo tomar. “Mas ele me abandonou...”, diziam umas moças por aí, e tudo seguia na mais perfeita ordem. Na televisão o noticiário de sempre... assaltos, violências, vinganças. Ela, do alto da montanha, distraidamente,  mergulhava no sal.
Descobrira há algum tempo que a voz das árvores canta o mar. É o mar. O mesmo mar que pensava ter deixado para trás. Agora em tempos de folhar, seguia sempre o horizonte de seu novo-antigo mar. O que poucos sabiam é que ela precisava dele para sentir. Sua pele era costura feita com mocroscópicos cristais da mais fina areia. Seu coração salteava ventos presentes em todos os desertos. E seu sangue... a mais intensa tempestade.
No dia que subira a montanha, não sabia que mar era não se saber nele. Chorou. Pensou em voltar. Desistir. Queria mergulhar no que já sabia. A vida não quis. Era preciso que se abandonasse até esquecê-lo de vez. Era necessário abandoná-lo para o reencontro.
Era sempre assim. A solidão, vendida como quinquilharia, era seu maior quinhão. Gostava de horas sem fim fazendo nada, só ouvindo o que a solidão lhe dizia. Tentava escrever. Nada saia. Tentava cantar. Só barulho. Tentava dizer algo que povoasse o coração, seu e dos outros. As palavras pareciam dormir.
O céu lampejado de flores dizia que azul é canto de nuvem quando brinca de chuva com o grão. Ouvia isso e via de repente a gargalhada de sua avó ao fundo. Todo o universo era ali. Engraçado respirar a eternidade enquanto se é finito, pensava ela. Ela ruminava o sopro e lançava pólen nas vestes da noite. Certa vez, sua avó lhe disse que estrela era isso: céu grávido de sonhos e que cientista não sabia disso porque não sonhava mais, só explicava, explicava... coisa chata! Vai sonhar, filha, e engravidar o céu! Afinal de contas como você acha que o mundo foi feito?
Era sempre assim. O sol se nascia para dentro do olho. Ela cegava de afeto e relampejava gotas de alecrim. (Dizem os anjos que o corpo de deus brilha em forma o cheiro do alecrim). Nesses dias ela sabia que havia transbordado o som e que o homem amanhecia para o alto da montanha.
Era sempre assim. O alto da montanha, ela e o mar. Ela queria levar todos os homens para lá. Mostrar como era fácil a solidão quando se acaricia a face da lua. A lua... Do alto da montanha, bastava esticar o braço para o cavaleiro andante, morador da lua, levá-la ainda mais alto. De lá do alto, ela olhava, olhava, olhava... pra dentro tudo é abismo. Quanto mais alto, mais pra dentro... pra dentro... dentro... Eles se olhavam sempre em silêncio. Silêncio foi a maneira que encontraram de se internizar em amor.
O som das águas dizia que seu corpo fora feito para destroços, costurado com a mais fina necessidade de desmoronar. Todo seu andar desaguava verdades muito íntimas e pequeninas... que se espelhavam rio a fora... desde a foz.
Disseram para ela que a chegada era o fim. Mas ela mesma não ouvia assim. Lambia o corpo da vida e exalava uma existência repleta de foz em fonte... a sua chegada era sempre assim. Toda chuva em estado de parto dá a luz ao mar... um novo e renascido mar... instante de reencarnação do rio.

Olhava, olhava, olhava... e era sempre assim... o alto da montanha, ela e o mar tornados uma só carne para vigência e abrigo da poesia.